"Quando éramos pequenas, antes de dormir havia um ritual. Ela se
deitava ao meu lado na cama e uma de nós fazia cócegas nas costas da
outra – um dia eu, no outro ela. A medida era contar até 100. Com as
pontas dos dedos, ela escrevia em minha pele o seu amor de irmã mais
velha.
Guardo essas cenas comigo, junto à maciez das mãos de minha mãe. Num
tempo sem internet, longas eram suas conversas ao telefone. Eu me
deitava ao alcance de seus dedos e, enquanto os assuntos se
desenrolavam, ela fazia caracóis nos meus cabelos, tocando com as unhas
compridas meu couro cabeludo.
Eu não me achava capaz de viver sem aquelas mãos. Mas meus pés pensaram mais rápido e deram um jeito de me trazer até aqui.
Hoje, ofereço as minhas. “Aqui nas costas, com a ponta dos dedos”,
pede meu filho, objetivo. E me ponho a lhe dizer com as mãos aquilo que a
boca não é capaz. E o corpo dele é todo ouvidos para longos textos de
amor e perdão. Ontem, no curativo que o pai lhe fez nos dedos dos pés,
muito também foi dito – e ele compreendeu.
Raramente tive esse diálogo com meu pai. Havia recessos, como no dia
em que meu irmão, sem querer, fechou a porta do carro na minha mão. A
recompensa da dor foi sua medicina dedicada a mim: dedos examinados e
enfaixados, devidamente tratados com pomada anti-inflamatória. Alguém
para me fatiar a pizza na hora do jantar e um coração saciado da velha
sede de atenção. Retribuí bem mais tarde: não tendo nada a dizer diante
de uma doença que nos vencia, eu tagalerava cafunés. Inevitavelmente ele
se foi, não sem antes deixar claro que não havia carinhos como os meus.
São muitas as histórias dedilhadas, mas o tempo parece ter roda: logo
as mãos se ocupam de outros afazeres e passam a correr como pés
aflitos, em busca do intocável. É preciso um fato novo ou alguém para
que os dedos recuperem a sensibilidade e retomem alguma suave
coreografia.
Sensíveis a essa verdade que habita a todos, quatro jovens cheios de
dedos corajosamente acarinham uma cidade seca. Com gestos simples, que
alguns podem nomear como inúteis, três mocinhas e um rapaz de 20 e
poucos anos alimentam um sonho chamado “Coletivo Dedos Verdes”: usam a
cabeça para tocar pessoas. Apenas um de vários pequenos movimentos que
nos falam de uma metrópole sensível ao toque.
A flor ameniza a dor, um sorriso cala a buzina nervosa e um tocar de
pele nos surpreende com a notícia: há alguém ali do outro lado.
Desconfiadas, as pessoas confirmam: não estamos habituadas ao carinho
gratuito, à atenção. Não sabemos mais ser importantes para o outro.
“Um coletivo de intervenções urbanas e humanas” é como se define o
grupo fundado, não por acaso, por uma estudante de psicologia e três de
arquitetura. Em um trabalho de formiguinhas, eles mudam cenários por
poucos e valiosos instantes. Distribuem flores no semáforo, investigam
sonhos ocultos, decoram com almofadas um pedaço do chão da rodoviária e
se põem a ouvir histórias de quem as tiver para contar. Seguem
espantando positivamente os descrentes de receber algo de graça,
habituados a imaginar que tudo está à venda. Provocam tantos olhares
desconfiados quanto sorrisos. Transmutam ambientes hostis em um dia
azul.
Eles querem nos tocar. Querem nos fazer lembrar dos nossos próprios
desejos, da alegria ali ao alcance. Um movimento sem grandes pretensões,
que a cada coração tocado muda um universo inteiro. São jovens que já
nos falam de um novo mundo, dispostos a um milagroso efeito dominó. É
tão simples. Tão simples, que ninguém faz. Mas seus dedos verdes fazem. E
nos convidam a fazer também."
De: Cris Guerra